Sobre as mesmas coisas por Michelle Pucci
” Obsessão quando atravessa na garganta, a gente empurra com um copo d’água.” Mesmas coisas , livro inédito de Manoel Carlos Karam
Fotograma 1 – Tudo começou antes. Muito antes. (A gente nunca sabe quando começa ou quando termina.) A frase tudo começou muito antes sempre vem à minha mente quando preciso contar algo a alguém. Sempre substituo a frase era uma vez por tudo começou muito antes. Talvez começou (eu não tenho certeza do momento exato que começou) quando recebi em meu apartamento no Alto da XV , no ano de 2006, a atriz, diretora, iluminadora, Nadja Naira e o escritor poeta Luiz Felipe Leprevost. Nós nos reunimos para ler juntos. Era isso que queríamos fazer. Ler juntos aleatoriamente alguns autores. Preferencialmente paranaenses. Só isso, nada além disso. Nenhum plano, nenhuma verba para alavancar nada. O objetivo do jogo era nos encontrarmos para ler em voz alta. O ato de realizar o encontro já era um primeiro passo, ou o segundo. Porque a ideia é que era o primeiro passo. Eu me lembro da Nadja chegando com livros do Manoel Carlos Karam nas mãos.
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Fotograma 2 – As margens das ideias borradas. Elas, as ideias, penso que começam muito antes, no espaço do devir. Então penso no devir. Na dinâmica do número três. Por que três? A dinâmica de três tempos: o passo número um; aquele passo desconcertante (Ou seria desconcertado? Eu de minha parte, nasci a fórceps em Curitiba Maternidade Nossa Senhora das Graças) Retomo o passo, aquele passo, o desconcertante, é o nascimento. O passo número dois vem para dar equilíbrio, até que chegue o número três. O terceiro é sempre o novo começo, ao mesmo tempo que não é um começo, porque já houve um começo e já houve um fechamento. O terceiro passo seria o fechamento e abertura ao mesmo tempo. Não fui eu que inventei isso. Alguém me revelou isso. Eu me lembro, foi quando estudei na Universidade Federal do Paraná, de 2011 a 2015. Houve um dia em que decidi atravessar o pátio em direção ao quarto andar do edifício D. Pedro II e assistir a algumas aulas de filosofia. Mas antes, eu me lembro, ouvi falar de Deleuze, foi o diretor Marcio Abreu, diretor da Companhia Brasileira de Teatro. Fiquei ouvindo aquele diretor de teatro falar de Deleuze em uma oficina de dramaturgia e construção de cena. Era o ano de 2010. A imagem do Márcio com o livro de Gilles Deleuze na mão. A teoria da diferença e repetição.
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Fotograma 3 – No último ano da faculdade vendi meu carro para poder pagar a mim mesma um salário mensal. Eu havia lançado um disco chamado Respiro em maio de 2015, antes disso havia deixado pra trás um emprego que já não fazia mais sentido pra mim. Vendi meu carro. Queria dar a mim mesma uma bolsa de estudos em filosofia. Já havia entregado minha monografia intitulada A dimensão das mesmas coisas: a literatura de Manoel Carlos Karam em cena. Eu estava obcecada por tudo aquilo que havia descoberto do lado oposto ao que eu permaneci durante os anos de graduação em Letras. Shopenhauer, Deleuze, Descartes. Não havia meios de me concentrar em algo que não fosse isso. Um dia telefonei ao Bruno Karam e perguntei a ele “Seu pai estudou filosofia Bruno? ” ao que ele respondeu “Não, mas na biblioteca dele havia toda filosofia que se podia imaginar”. O Karam sempre dizia que não era um escritor, ele sempre dizia que era um leitor. Eu, orgulhosa da minha investigação, pensei imediatamente na minha própria imagem dando um soquinho no ar. Aquele tipo de soco com o punho fechado, dedos firmes todos para dentro da palma da mão. Aquele típico soco que a gente dá, bem curtinho e muito satisfeito, sempre que tem uma epifania.
Furu ike ya
Kawazu tobikomu
Mizu no oto
Matsuô Bashô (1644-1694)
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O Devir – Assim mesmo, o nome deste fotograma é este, como um nome próprio ou um título. Se fosse dito em voz alta , seria com aquela voz de dublador da Herbert Richers, O Devir em pessoa dizendo assim : Era uma vez uma atriz/cantora que resolveu fazer uma graduação em Letras. Então, alguém, o próprio Devir, olha para fora do fotograma e diz ” – Sabemos que não foi assim, do nada.” Ela não chegou assim do nada, como um personagem que aparece das coxias escuras do palco, assim do nada. Ela estava pensando em common uncomunicability. Ela queria diminuir a distância do abismo. Ela aparece na fotografia da capa do seu disco sentada lá no alto do edifício D.Pedro II. Aquele onde estudou filosofia. Vestida de mulher meio pássaro.
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“A Catarina quando pendurava a máquina fotográfica no pescoço para sair de casa sempre tinha alguma coisa para dizer ao abrir a porta da rua, alguma coisa como vou bater algumas fotografias do tédio e já volto, vou bater algumas fotografias do mormaço e já volto, vou bater algumas fotografias da passagem do tempo e já volto, vou bater algumas fotografias do acaso e já volto, vou bater mais algumas fotografias do acaso e já volto, e assim por diante. Só por farra.” Mesmas coisas , trecho do livro inédito de Manoel Carlos Karam
A fala da atriz – Um dia decidi estudar literatura . Entrei na universidade com o objetivo de ler muito e passar um longo período absorvendo conhecimento na área de Letras. E, além disso, respirar um pouco os ares do ambiente acadêmico, o qual eu já havia quase desistido de frequentar ou enfrentar. Dei uma pausa de cinco anos no teatro e arrumei um emprego na TV, já havia feito dois anos de jornalismo que me serviram para conseguir a vaga.
Desde o meu primeiro ano no curso, eu já tinha guardado na minha “nuvem” a ideia de que faria Karam em minha monografia. Fiquei buscando, entre os professores orientadores, alguém que aceitasse minha proposta de inserir minha experiência com teatro no trabalho de conclusão de curso. Eu queria fazer algo que borrasse margens, algo que eu pudesse levar comigo no dia seguinte a minha formatura. Eu precisava trabalhar nesta defesa com um pé na sala de aula e outro na sala de ensaio. Encontrei na professora Luci Collin mais que uma orientadora, como diria o Karam, encontrei uma cúmplice para minha investigação.
Encarei o abismo. Mas não me joguei nele sozinha porque não sou louca. Me joguei nele, de mãos dadas com Nadja Naira e Luci Collin. Meses escrevendo e trabalhando na sala do fotograma 2 . Sala onde vi aquele diretor de teatro falar de Deleuze. Uma mesa, janelões, uma araucária por entre os prédios do Largo da Ordem, uma araucária testemunhando tudo.
“Um ator precisa captar o real e dar ao real um alto grau de intensidade (…) parar com o fingimento.” Joel Pommerat, diretor e dramaturgo francês
“Não dissimular, não pousar, mas mostrar.” Para o trabalho de conclusão de curso, escolhemos fragmentos para o roteiro do jogo de cena como este retirado do livro ainda inédito Mesmas Coisas: “é apenas o desenho feito pela sombra e chamado de maçaneta (…)” para elucidar o problema filosófico que Karam apontava em sua obra. Esta foi a maneira pela qual o autor descrevia o seu trajeto literário. Coloquei-me diante da banca como palavra em ação, encenei o nascimento e a morte do gesto, o percurso de um escritor dentro da linha temporal de uma apresentação de 30 minutos repleto de devires.
Coloquei tudo que era até aquele momento e toda bagagem que tinha à disposição desta pesquisa e a levei até às últimas consequências.
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Epílogo – O trabalho de conclusão de curso foi apresentado em 2015 e teve nota máxima. Cresceu e foi abraçado por mais um bocado de gente. Em 2016 ganhou o edital de Lei Municipal de Incentivo a Cultura. Em 2017, virou jogo de cena com audiência, cantora , pianista e truques de mágica. Virou serenata, website, flashmob. www.mesmascoisas.art.br
Mesmas coisas já está no mundo. Não o livro. O procedimento. Tornamo-nos reflexo do autor, eu e todo mundo envolvido no projeto Mesmas Coisas. Somos a fotografia e o espelho. Queremos continuar caminhando por onde Karam deixa a sua cartografia. Terminar algo para começar outra coisa logo em seguida. E assim caminha a humanidade. O projeto Mesmas Coisas neste momento (ou até que esta noticia envelheça) atende também pelo nome de farra vermelha ou obsessão ou dogma entalado na garganta. Fotografia fazendo papel de relógio. Guarda chuva fazendo papel de bengala. Lata de lixo fazendo papel de saída. Extintor de incêndio. Ventilador. Coleção. Calendário. Dicionário. Labirinto com uma experiência em cada esquina.
“Uma fotografia antiga pendurada na parede, pendurada pelo canto superior esquerdo por um pequeno prego, a cabeça do prego não pressionou a fotografia contra a parede, então quando batia vento a fotografia balançava, e diziam na casa que a fotografia fazia companhia para o pêndulo do relógio, o relógio que ficava na mesma parede. Era o que a fotografia antiga queria, marcar as horas, que é para muita gente a função das fotografias. ” Trecho do livro inédito Mesmas Coisas de Manoel Carlos Karam
Este texto de Michelle Pucci foi publicado na Edição de Maio da Revista Relevo https://issuu.com/jornalrelevo/docs/relevo_de_maio_de_2017
Incentivo: Banco do Brasil | Lei Municipal de Incentivo à Cultura | Prefeitura Municipal de Curitiba PR
fotografia: Paula Morais