A Defesa

Apresentação/performance à partir do original do livro MESMAS COISAS
e outros textos de Manoel Carlos Karam 
por Michelle Pucci
Colaboração Nadja Naira e Luci Collin
2015

(Preparar a sala com calendário, relógio, placas de saída e entrada, extintor de incêndio,
quadro-negro, giz.  Calça vermelha, camiseta branca, pés descalços.
Entrar.  Imagem de mulher com o rosto escondido atrás dos muitos objetos que carrega pra cena.
Jornal, pedestal, botas, guarda-chuva, fotografias, caixa de fósforo.)

MICHELLE – Defesa.
(Dar dois passos em direção à mesa. Rosto escondido, trincheira. Sinal de medo.)

– Era uma vez um personagem desenhado pelos seus medos, máscara com todos
os espaços ocupados por medos. Sem medo de encontrar o medo.
Encontrá-lo, cumprimentá-lo como um velho amigo. Companheiro de infância.
Há quem ria do número 365. Outros não passam debaixo do numero 13.
E muitos consideram mau agouro ver o número 7 atravessar a rua.
Há quem pendure o número 0 atrás da porta para dar sorte. A sorte e o avesso de alguma coisa.
Tudo e o avesso de alguma coisa, tudo e vice-versa, tudo cabe no etc.
História, geografia, aritmética e culinária cabem no etc.
O tesouro da juventude cabe no etc.

(Largar alguns objetos. Descrever a cena real, a sala: uma mesa assim, uma cadeira assada,
objetos espalhados, essa sala…)

– A porta entreaberta, a entrada de uma linha de luz e além disto somente sombras.
O risco de luz denuncia a existência da porta porque espalha alguma claridade sobre a maçaneta,
a maçaneta mostra a existência da porta, a linha estreita de luz sugere a posição da porta,
e mais nada é visto na fotografia. Ou nem aquilo há na fotografia, o que parece ser
a maçaneta é apenas um desenho feito pela sombra e chamado de maçaneta da mesma maneira
como apelidar de rinoceronte o desenho de uma nuvem.
A linha de luz pode não passar de uma nuvem cujo desenho lembra uma linha de luz.
A porta pode estar completamente aberta ou fechada ou entreaberta, se houver porta.
O que está escrito no verso da fotografia também parece uma sombra fingindo-se de nuvem,
um conjunto de letras cuja forma lembra a assinatura de um nome.

(Ter um branco.)

– A escolha do nome, que poderia ser Pedro mas ele me dá algumas imagens que não me agradam.
Roberto é nome de quem nunca sai bem nas fotografias. João me parece um sujeito que sempre
sai bem nas fotografias, só. Guido ficaria bem se fosse num filme. Sergio pelo s, pelo g,
pelo acento no e, pelo pingo no i. Jorge serve para codinome de Rubens e vice-versa numa sociedade secreta Manoel seria desonesto porque é bom nome para
um anônimo. Raimundo não escapa da rima. Miltom é escorregadio ou tardio, ou tardio?
Armando dá a ideia exata apenas de Armando. Carlos é porrada pura, é pouco.
Gabriel exigiria um piano Steinway. Luiz é, me parece, pessoal e intransferível.
Alberto é baixo, diminuto, anão, um monstro ciclópico que fica descartado.
Gilberto, tão sem tempo, não teria tempo de sol nem chuvoso. 

(Observar o guarda chuva esquecido no canto da parede.)

– João se se tratasse do homem cordial. Mauro poderia mas seria extravagante.
Manoel?,veleidade. (…) No dicionário: Veleidade, s. f. 1. vontade malformada e imperfeita
que fica aquém da decisão; vontade imperfeita, sem resultado. 2. Capricho, leviandade.
3. Desejo vão; utopia. Etc

(Pés descalços. Os dedos dos pés, as pegadas. Calçar botas pequenas que não servem nos pés. Caminhar. Com o pedestal-câmera tirar foto dos pés.)

– E tem também a história do sujeito que…nasceu (1947) em Rio do Sul, Vale do Itajaí (uma enchente por ano),
Santa Catarina, mas foi curitibano por mais de trinta anos (uma neve de vez em quando).
Jornalista (um salário por mês). Escreveu e dirigiu duas dezenas de peças de teatro,
mas cortou o palco para ter tempo de pensar nem cavalo sentado, na flor de samambaia.

 – Você conhece este homem?

– A fotografia foi mostrada para a Antônia por um homem, ela olhou rapidamente, respondeu que não,
que não conhecia o homem da fotografia. Foi obrigada a fazer um grande esforço para dizer que não conhecia
o homem da fotografia porque o homem da fotografia, como ela sabia antes de olhar para a fotografia,
era o homem que mostrou a fotografia. Quando conta a história, a Antônia diz que falta escolher um nome
para o homem da fotografia e faz uma advertência: venho cogitando deixar a história mais clara
trocando fotografia por espelho, só falta decidir se côncavo ou convexo.

(Fazer o gesto côncavo e convexo com as mãos, observar as mãos. Mãos no rosto.) 

– Se a escolha do prenome é difícil, pode-se cogitar que indivíduo seja chamado pelo sobrenome.
Gonçalves, resumindo o roteiro, trocaria o dia pela noite ou a noite pelo dia ou trocaria alguma outra coisa.
Borges é temeroso. Santana serve para codinome de Brandão e vice-versa numa sociedade secreta.
Torres permaneceria dias e capítulos inteiros debaixo das cobertas com apenas os olhos de fora
para o caso de Godot chegar repentinamente. Simões é o mesmo que Pereira e talvez vice-versa.
Ou Aragão ou Falcão ou Furtado ou Bernardes ou Cavalcanti ou
Guimarães ou Freire ou Barbosa ou Pessoa mas pessoa não é nome
 de personagem.

 – Mas há pessoas chamadas de Mané ou Tonho ou Carlito ou Beto ou Zeca ou Dito ou
Pelé ou Carlinhos. Carlinhos seria desonesto, é bom apelido para um anônimo. Zé não tem inimigos,
como fica a trama? Dentinho não estaria presente, mandaria uma fotografia como no velho gracejo.
Bentinho é o masculino de Capitu, que é o feminino de Bentinho. Talvez prenome, sobrenome e apelido,
algo como Pedro dos Anjos, o Dentinho. Ou Gabriel Ramos, o Canjica. Zé impulsivamente de José Veloso,
José Guimarães, José Furtado, José Rocha, impulsivamente Zé. Uma inicial apenas, seguida de ponto.
Z. Ou sem ponto. Ou com três pontos. A inicial M é um apelido. A, B, C, D, apelidos para os inomináveis.
Verbos em profusão mas o sujeito não passa da palavra ele, da palavra eu, da palavra tu.
Quem sabe depois de se ter um rosto definido seja encontrado um nome para ele, eu e tu,
estas três metades da divisão do inominável.

(Escrever a letra M no quadro negro, encontrar a letra M de novo nas mãos, observar. Esconder o rosto.)

– Que o amanhã está escrito na palma da mão com notas de rodapé sobre ontem
é o máximo que consegui engendrar para hoje —
ah estas palmas de mãos que não passam de um livro com duas páginas —
ah estas duas páginas cada uma com a única letra cada uma com a mesma letra
e fica parecendo que o alfabeto tem apenas duas letras e que ambas são a mesma —
exatamente como uma bifurcação onde os 2 caminhos vão na mesma direção —
como a passagem de ida e volta que parece não te tirar do lugar
porque é como o bumerangue porque é como o filho pródigo —
tudo isto extraído de um livro com duas letras quem diria ponto de exclamação —
um livro estas duas mãos um livro que abre e fecha —
adivinhe o que eu tenho na mão fechada —
acertou quem disse um soco.

(Observar a mão, observar a letra M no quadro e na palma da mão.)

– A Michelle nasceu, a fórceps, (1977) na maternidade Nossa Senhora da Graças, Curitiba.
Neste mesmo ano, o Karam montava à Margem o Urubu. Passou a infância e adolescência
em um lugar chamado – o Novo Mundo. Foi professora primária, assistente de cabeleireira,
apresentadora de TV. Hoje é estudante de letras (uma porção de Mesmas Coisas, ela diria).
Fez algumas peças, alguns 
shows. Sofre muito. Encontrou no Manoel a confirmação
de que ser inviável 
é para os fortes.

(Mostrar fotos de publicidade da Michelle.)

– A moça fingindo que mordia a maçã, a Antônia. A boca aberta, os dentes apontando na direção da maçã,
os olhos na direção do fotógrafo, os dedos da Antônia tocavam na maçã mas a maçã estava
distante da boca da Antônia, a maçã afastada dos dentes, do paladar, do apetite, fingindo.

(Mostrar caricaturas do Karam. Colocar CD Respiro. Ouvir OFF Karam.)

– Eu sou inviável, que abertura não é mesmo?
Eu sou inviável. Como é que chamam isso?
Impactante. Descobri a palavra outro dia.
Ela resolve tudo, basta dizer impactante que está dito.
Não são necessários estudos, análises e qualquer outro esforço.
Impactante diz tudo.
Encontrei uma abertura impactante: Eu sou inviável.

(Mostrar retratos da infância.)

– O Lucas carregava no bolso a fotografia dele sentado na privada lendo jornal.
Ele dizia: nunca saí de casa sem a fotografia. Ele dizia: porque um dia eu posso precisar.

(Guardar foto no bolso. Procurar saída. Observar o guarda chuva esquecido no canto da parede.)

– Catarina quando pendurava a máquina fotográfica no pescoço para sair de casa
sempre tinha alguma coisa para dizer ao abrir a porta da rua,
alguma coisa como vou bater algumas fotografias do tédio e já volto,
vou bater algumas fotografias do mormaço e já volto,
vou bater algumas fotografias da passagem do tempo e já volto,
vou bater algumas fotografias do acaso e já volto,
vou bater mais algumas fotografias do acaso e já volto, e assim por diante.

(Procurar de novo saída. Observar novamente o guarda-chuva e a saída.)

– A saída pode ser procurar este rosto em fotografias publicadas por jornais.
Por que faria isto? Por que responderia a uma pergunta assim?
E alem disto onde se lê a saída pode-se muito bem ler a entrada.
Olho para um rosto na fotografia em preto e branco na página 16 do jornal.
Não me interesso pela totalidade do rosto, sou tentado a roubar apenas os óculos
para o rosto que desejo compor.
A reportagem do jornal não traz a fotografia do entrevistado, tem uma caricatura.
Um rosto tem traços, dizem os desenhistas e dizem isto também aqueles que encontram
alguém parecido com outro(s). Um sósia.
Vou a minha memória buscar o registro de fotografias. Inventando a memória:

– Machado de Assis – de perfil tem uma única orelha (aquela que falta para van Gogh)
– Luis Buñuel – os olhos baixos e um cigarro no canto direito
(ou esquerdo, as fotos podem ser invertidas) da boca
– Claude Levi-Strauss – os olhos tentando sair por cima dos óculos
– Oswald de Andrade – a gravata tratando de não ficar de fora da foto
e ele acha isto engraçado
– Will Eisner- as sobrancelhas foram desenhadas por ele próprio
– João Guimarães Rosa – a gravata-borboleta generosamente faz o papel de barba
… e …
–  Manoel Carlos Karam – arrancou do dicionário a palavra paixão: “Carrego comigo!”
Nota da cabeça de página no livro Impostor no baile de máscaras.

 (Ter um branco. Colocar as mãos na frente do rosto. Retomar estado do começo.)

– Defesa.

(Descrever novamente a sala até chegar no calendário.)

– Uma fotografia antiga pendurada na parede, pendurada pelo canto superior esquerdo
por um pequeno prego, a cabeça do prego não pressionou a fotografia contra a parede,
então quando batia vento a fotografia balançava,
e diziam na casa que a fotografia fazia companhia para o pêndulo do relógio,
o relógio que ficava na mesma parede.
Era o que a fotografia antiga queria, marcar as horas,
que é para muita gente a função das fotografias. 

(Rasgar uma fotografia.)

– Mas quem disse que eu quero sair do labirinto quem disse
quem com ponto de exclamação —
foi com uma passagem só de ida que eu cheguei tentaram me vender a passagem de volta
ofereceram desconto quiseram mesmo me empurrar de brinde uma passagem de volta
mas eu queria apenas uma passagem de ida e foi com ela que eu cheguei
que eu estou aqui, não estou? Nós estamos aqui! —
que eu cheguei montada na garupa do motociclista do globo da morte é conversa fiada
porque quando eu cheguei não havia circo chegando —
labirinto com escada
labirinto com sótão e porão
labirinto com varanda
labirinto com gangorra
labirinto por onde se caminha feito bumerangue
labirinto com rede esticada entre duas goiabeiras —
labirinto com uma padaria em cada esquina — daqui não saio daqui ninguém me tira.

(Rasgar outra fotografia.)

– Em cada dobra do labirinto há um extintor de incêndio, um telefone público,
uma bica d’água e duas setas indicando a saída e a entrada,
esta para aqueles que desejarem 
sair por onde entraram.

(Armar o pedestal-árvore. Sentar e esperar Godot sob a árvore.
Tempo. Sair e olhar para fora da fotografia.)

– A fotografia estreita e alta,
altura e largura suficientes para ser a fotografia de uma árvore,
árvore suficiente para que fosse levantada uma hipótese facilmente transformada em certeza,
o Manoel atrás da árvore.
A mancha sutil que saía de trás da árvore foi dada como pouco sutil e deixou de ser hipótese,
era a fumaça do cachimbo do Manoel, logo restava anotar no verso da fotografia
uma referência ao cachimbo. Por exemplo: esta é a fotografia onde não se vê um cachimbo
mas é a fotografia de um cachimbo.

 (Sentar embaixo da árvore e olhar para fora da fotografia.)

– Alguém olhando para fora da fotografia, o Francisco.
Mas não estão sempre todos olhando para fora da fotografia?
Olhar para o fotógrafo e para a câmera não é olhar para fora da fotografia? 

– Na fotografia seguinte o Francisco posou olhando claramente para fora da fotografia
porque escolheu olhar para o lado. Acabou restando uma dúvida,
ninguém se surpreendia quando acabava restando uma dúvida,
acabou restando a ideia de que talvez o Francisco estivesse olhando
para o lado onde havia o segundo Francisco,
que preferiu permanecer fora da fotografia,
que preferiu imitar o fotógrafo.

(Tirar as botas. Pés descalços. Caminhar.)

– O Lucas fotografou os próprios pés apontando a câmera de cima para baixo,
as pernas escondidas pelas calças, os pés descalços.
Escreveu as palavras pés descalços com tinta vermelha, muito vermelha, escreveu sobre a fotografia.
O Lucas reencontrou a fotografia e pensou, poderia ter usado a tinta vermelha, muito vermelha,
para escrever as palavras pernas escondidas,
para então reencontrar a fotografia e pensar, poderia ter usado a tinta vermelha, muito vermelha,
para escrever as palavras pés descalços, e reencontrar a fotografia e pensar,
e assim para trás entre o exposto e o escondido

(Tirar fotografia dos pés. Cantar baixinho um Jazz.)

– o mundo parou de girar para mim 
mas continuou girando para todos os outros
só me restou o roquenrol
pra entrar no ritmo e não ficar sozinho
só me restou o roquenrol
só me restou o roquenrol

– Fui ao rosto do cantor roubar traços, acabei me atrapalhando,
havia também traços no guitarrista, no contrabaixista
e na moça ao meu lado na plateia,
ela também cantava que só restou o roquenrol o roquenrol 

(Cantarolar melodia original.)

– Era uma vez um personagem desenhado pelos seus medos,
máscara com todos os espaços ocupados por medos.

(Ter um branco.)

– A fotografia em branco, disse a Eva,
não me lembro se falei sobre a fotografia em branco, falei?,
agora eu me lembro, disse a Eva, falei, sim, 
a fotografia em branco, claro.

(Ter um branco. Medo.)

– O relógio pendurado na parede fazendo o papel de calendário. 

(Ter um branco. Medo e pressa, quase aflição.)

– Prenome, sobrenome e apelido: uma forma de número. Ou de pronome. Nome oblíquo.
O nome do pai, do filho e da mãe. 
Aurélio é nome. 
Do lat. nomem. S.m. Palavra com que se designa pessoa, animal ou coisa.
A expressão nome próprio é utilizada para lembrar que existem nomes impróprios.
Eu sempre digo que banana não é o nome da fruta, antes disto é o nome do gesto.
Depois do nome vem o número do telefone, o número da casa, o número do apartamento,
o número do andar do prédio, o número do código postal, o número da caixa postal, número do edifício –
o quanto custa é um número. Números e números, mas sempre nome.
O número e o nome que indica como localizar pessoa, animal ou coisa.
Existem livros especializados em nomes. Um livro de grande efeito é o dicionário,
que se dedica a nomes de coisas, incluindo os nomes coisa, gente, geografia, língua,
número, medo e a expressão latina et coetera. 

(Olhar as palmas das mãos e os pés descalços, como se os fotografasse novamente.
Colocar as mãos na frente do rosto. Máscara de lembrança, memória.)

– A Francisca não tinha certeza se alguém já havia feito antes
mas não cogitou investigar se era ou não a primeira vez que aquilo acontecia,
ela sabia que ser a primeira vez não era importante, só haveria com o que se preocupar se fosse a última vez.
Então ela fez: rasgou a fotografia em pequenos pedaços irregulares,
não tão pequenos que desaparecessem na palma da mão, a Francisca rasgou a fotografia
em pedaços suficientemente pequenos para criar o exercício de recuperação da fotografia.
Em seguida a Francisca lançou os pedaços da fotografia na cesta de lixo,
sentou-se e começou a remontar a fotografia na memória.

– O que veio primeiro?
A palavra
 defesa?
Ou a imagem da mulher com rosto escondido atrás dos objetos?
Ou as duas coisas juntas?

– Provoco um ponto de interrogação
e o tempo de um ponto de interrogação é suficiente para que eu seja mais rápido no gatilho.

(Refazer a cena toda feita até agora. Refazer todos os gestos.
Pegar os objetos. Dar dois passos pra trás em direção à saída.)

– Mas, tenho o hábito de reservar algumas palavras para depois do ponto final.

(Sair e fim.)