A cidade sem mar

Peça de teatro/performance com textos de Manoel Carlos Karam 
por companhia brasileira de teatro
Roteiro e direção de Nadja Naira e Giovana Soar
Com Ranieri Gonzalez, Edson Rocha, Moacir Leal, Nina Ribas Luiz Felipe Leprevost e Michelle Pucci
2016

 

Situação 1:

Uma fila. Na entrada do teatro, ainda na Rua São Francisco.
A Recepcionista fornece senhas com números entre as pessoas da fila.

Situação 2:

Ainda na fila. Abre-se o portão e as pessoas são conduzidas até o pé da escada.
A Recepcionista exerce sua função: organiza as ações, realoca a fila, fornece canetas
e fichas de cadastro. Os homens e as mulheres que estão na fila, volta e meia, caminham,
trocam de lugar, comentam diversos assuntos.
Os que esperam podem fazer palavras-cruzadas, criam jogos, fazem lista de desejos pro Gênio da lâmpada,
lembram provérbios ou ditados populares, fazem mágicas com baralhos.
Os personagens estão misturados com as outras pessoas da fila. Estão bem vestidos,
as mulheres usam conjuntos coloridos e os homens vestem ternos alegres
e gravatas de cores berrantes.Todas as roupas revelam algum exagero.

Situação 3:

Uma sala de espera. As pessoas sentam em cadeiras agrupadas de frente para uma porta
onde está escrito saída. Há um pequeno bar num canto da sala de espera.
As pessoas que esperam são desconhecidas entre si.
Falam uns para os outros ou mesmo para ninguém, algumas vezes falam sozinhos.
Os que esperam revelam uma impaciência contida.

Situação 4:

Um banho de sol na beira do mar.
Algumas pessoas são chamadas pela Recepcionista.
Saem da sala de espera, entram numa sala pequena e tem direito à cinco minutos de exposição ao sol.
As pessoas encontram à sua disposição: cadeiras de praia; guarda-sol e protetor solar;
areia e baldinho; vista pro mar (foto/banner);
exemplar da revista Leite Quente com textos do Karam.
Um cronômetro marca o tempo do banho de sol, regressivamente.
Enquanto isso, acontecem “números musicais” na sala de espera:
Síncope (Luis Felipe Leprevost), Urubu tá com raiva do boi (Baiano e os Novos Caetanos).
No final do banho de sol, saem em procissão cantando versão de Caicó (Villa-Lobos, letra Karam).

Situação 5:

Em trânsito. Público embarca no ônibus da Viação Graciosa rumo à Praça Tiradentes.
Ouvem off com narração da Guerra no ponto do ônibus e Crônicas de Alhures do Sul lidas pelo Karam.

Situação 6:

Um ponto de ônibus. Os personagens estão esperando o ônibus.
O gordo com violão, a mulher com sacola, o menino com mochila,
o velho com guarda-chuva, a garota de tênis. Chega um homem.
Público assiste a cena de dentro do ônibus.
Personagens embarcam no ônibus que retorna para a Rua São Francisco.

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Situação 1: Uma fila.

RECEPCIONISTA – (Ela observa a fila, conta as pessoas. Entrega senhas com números.)
Boa noite. Benvindos. (Toca o telefone.) Desculpem. (Pausa.)
Só mais um minutinho. A entrada não demora. (Ela sai.)

 

RECEPCIONISTA – (Ela volta.) Desculpem. Enquanto a gente aguarda, eu gostaria de dizer
que aqui nessa rua morou o autor Manoel Carlos Karam, na década de 70.
A São Chico era uma rua, é uma rua dividida em três quarteirões, um deles bastante inclinado,
os outros dois com um declive menor, mas os três com paralelepípedos. (Mostra.)
A rua forma uma linha curva, apesar de curta não era, não é possível enxergar de uma ponta à outra.

Mas São Chico mesmo era, (é) o terceiro quarteirão, nós estamos no segundo,
o terceiro quarteirão com declive menor. Numa das margens tinha um prédio recente,
comprido em toda a extensão do quarteirão e de apenas três pavimentos, com janelas de vidros diminutos,
contrastando com as altas janelas das velhas construções da margem oposta. (Mostra.)

Começando pela esquina, na São Chico no terceiro quarteirão, nós estamos no segundo, no terceiro quarteirão tinha um prédio de dois andares, com loja de móveis.
Então vinha a casa mais velha de todas, seguida de um muro com marcas de velhice que davam um ar de insegurança.
O muro escondia alguma coisa. (Pausa. Observa calmamente.)

A casa mais antiga tinha janelas altas, de dois metros, uma porta de três metros de altura e paredes onde as falhas do reboco expunham tijolos.
Diante da única porta externa da fachada havia dois degraus.
Sentados no degrau mais alto, com os pés na calçada de pedras irregulares, conversavam dois personagens.

(Toca o telefone.)

RECEPCIONISTA – Alô. Boa noite. (Pausa.) Desculpe, não estou entendendo. (Pausa.)
Não, não é um restaurante italiano. (Pausa.) Não, mas do outro lado da rua existe um restaurante italiano. (Pausa.)
Não, o corpo de bombeiros é longe daqui. (Pausa) Sim. Sim. A funerária sim. (Pausa.)
Não corpo de bombeiros não. Longe, tão longe que nós tomamos muitas precauções para evitar incêndios. (Pausa.)
Olha, isso teria que ser tratado com a produção. Acho que temos seguro contra incêndio, mas isso teria que ser tratado com a produção.
(Pausa.) A entrada não demora. (Pausa.) Sim, sim. Só mais um minutinho. A entrada não demora.
(Pausa. Ela sai falando no telefone.)
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Situação 2: Ainda na fila

RECEPCIONISTA – (Ela volta.) Boa noite. Desculpem. (Abre o portão.) Por aqui por favor.
(Conduz a fila até o pé da escada.) Vamos aguardar aqui. Só mais um minutinho. A entrada não demora.
(Ela distribui fichas de cadastro e canetas.) Tá todo mundo aqui? (Observa a fila. Conta as pessoas.)
Tá jóia! Preencham essa ficha por favor. Só mais um minutinho, por favor.

SENHOR – Eu menti.
RECEPCIONISTA – O quê?
SR – Eu menti.
RE – Mentiu o quê?
SR – Eu não voltei porque quis.
RE – Você pode preencher a ficha que eu já recolho.
SR – Eu menti.
RE – O quê? Mentiu o quê?
SR – Eu não voltei porque eu quis.
RE – Não?
SR – Não.
RE – Então por quê?
SR – Porque fui obrigado.
RE – Ué, quem obrigou?
SR – Um guarda.
RE – Meu Deus!
SR- Não se preocupe. Não aconteceu qualquer problema.

(A recepcionista continua a organizar a fila e a entregar fichas e canetas.)

RE – Um guarda falou com você?
SR – Falou. Falou bem educado que hoje eu não podia ir lá. Só amanhã de manhã.
RE – Por quê?
SR – Ele não disse.
RE – Não?
SR – Não. Quer dizer, disse.
RE – Disse ou não disse?
SR – Disse e não disse
RE – Ficou louco? Ele disse ou não disse. Não dá pra dizer e não dizer ao mesmo tempo. Ou uma coisa ou outra.
SR – Eu sei. Ele não explicou o motivo exatamente, mas disse que eram ordens. E isso é um motivo, não é?
RE – É, acho que é.

(A recepcionista continua a organizar a fila e a recolher fichas e canetas.)

RE –  Foi assim?
SR – Foi..
RE – Não teve mais nada?
SR – Não.
RE – Você não achou estranho?
SR – Achei. Ou não. Sei lá.
RE – Eu acho estranho. Sempre permitiram que você fosse lá. Por que proibiram só essa manhã?
SR – Sei lá.
RE – Pense nisso, por que proibiram só essa manhã? O que será que vai acontecer nessa manhã?
Se proibiram só hoje, tinha motivo pra isso. VAI acontecer alguma coisa.
SR – Você acha?
RE – É claro. Não queriam você por lá pra não ver alguma coisa. Eles estão escondendo alguma coisa.
Claro que estão. Ninguém faz um muro tão alto.

(Toca o telefone.)

RECEPCIONISTA – Olá. Boa noite.. (Pausa.) Oi, meu amor. (Pausa.) Amor, eu estou no trabalho, amor. (Pausa.)
Eu sei, mas estou no trabalho. Estou cheia de trabalho, amor. Foi uma tarde angustiantemente cansativa, amor. (Pausa.)
Eu disse angustiantemente cansativa, amor. (Pausa.) Eu sei, eu sei, eu também, amor. Mas estou trabalhando, amor. (Pausa.)
Está bom, amor, eu conto. Escondi atrás da geladeira. (Pausa.) Sim, amor, aquela que usamos no sábado eu escondi atrás da geladeira.
(Pausa.) Mas hoje é dia de semana, amor. (Pausa.) Está bem, amor, agora me deixa trabalhar, amor.
(Pausa.) Eu também. Beijo, amor. (Desliga o telefone.)

SR – Por que você disse que VAI acontecer alguma coisa?
RE – Porque achei que sim. Porque proibiram você de ir lá só nesta manhã.
SR – Você tem cada ideia. Pode ser que não seja nada disso.
RE – Você vai dizer de novo que eu vivo achando dente em galinha.

ED – Tem gente que não sabe botar ovo, mas cacareja muito bem.
NI – Os sentidos são uma faca de cinco gumes.
L.F. – Repolho não pensa, logo não existe.
MI – A banana propriamente dita não é a fruta, é o gesto.
MOA – Os tipos de estradas são inúmeros, mas o capengar dos caminhantes é sempre o mesmo.
MI – Deus dá caspas a quem tem ombros.
L.F. – Os cavalos de corrida gostariam de ter permissão para dar coices como os cavalos de tração.
MOA – Na natureza nada se perde, tudo se manufatura.
MI – Minha vida é um palco, meu papel é higiênico.
ED – Tanto faz: seis penas ou meia dúzia de chumbo.
MOA – Um princípio de mim tomou conta do pânico.
ED – Paz é verbo, guerra é verba.
L.F. – Dentro dos sapatos todos estamos descalços.
MI – E pensar que areia já foi ponteiro de relógio.
MOA – Para bom entendedor, um tiro para o alto basta.

SR – Você disse que VAI acontecer alguma coisa?
RE – Disse.
SR- Pois eu acho que JÁ aconteceu.
RE – O quê?
SR – Eu acho que JÁ aconteceu.
RE – O quê?
SR – Quando eu vinha voltando ouvi uns sons bem longe e…
RE – O quê?
SR – Parecia tiro.
RE – Por nossasenhorameioparecida, um tiro!
SR – Vários tiros.
RE – Você ouviu?
SR – Acho que ouvi. Os sons eram de muito longe, não deu pra ouvir direito, pra saber do que era mas eu, sei lá, fiquei achando que era tiro.
RE – Tiro?
SR – Tiros. Vários. Posso estar enganado.
RE – Mas pode não estar.
SR – É.

RE – Vamos entrar gente. É mais seguro. Por aqui. Vamos aguardar aqui.
(Mostra cadeiras posicionadas num canto da sala, de frente pra uma porta onde está escrito SAÍDA.)
Podem sentar. Aqui. Isso. Assim. Assim fica jóia. Só mais um minutinho. A entrada não demora.

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Situação 3: Uma sala de espera.

RECEPCIONISTA – (Ela volta e recolhe todas as fichas. Examina as fichas.)
Atenção! Por favor levante a mão quem respondeu: nome do seu cachorro: REX! (Conta as pessoas que levantaram a mão.)
Jóia! (Pausa. Examina as fichas.) E por favor levante a mão quem respondeu nos três desejos para o Gênio da lâmpada:
ser famosa durante 15 minutos, ser famosa durante 15 minutos e ser famosa durante 15 minutos.
(Conta as pessoas que levantaram a mão.) Jóia! (Pausa. Examina as fichas. Chama:)
Senhor Olavo B. (Ninguém responde.)
Senhora Marta Júnior. (Ninguém responde.)
Senhor Edson Alves Rocha. (Edson levanta.) Telegrama pro Senhor.
Senhor Eustáquio. (Ninguém responde. Ela sai irritada.)

EDSON – O que eu mais temia acabou de acontecer.
Minha convocação pra guerra. Chegou por telegrama, carta, telefone, e-mail, fax e/ou pessoalmente.
O funcionário que me entregou a convocação tinha um único braço, nenhuma das pernas.
Comunicou o que eu já sabia por telegrama, carta, telefone e-mail e fax: fui convocado pra guerra.

Viajei de trem, minha noiva estava na plataforma me dando adeus. Eu não tinha noiva mas uma lei exigia que todo soldado
tivesse uma noiva dando adeus na plataforma. A lei determinava que para quem não tivesse noiva
o governo providenciaria/providenciasse uma. A minha era bem bonitinha. O bilhete do trem era claro.
Destino: Front. Front com a mesma simplicidade de Paris, New York, Roma, Marte.
Supus que a passagem era só de ida por economia, a passagem de volta poderia ser um gasto inútil,
o folheto de instruções orientava pra providenciar a passagem de volta na volta “se for o caso”.
O folheto dava outras informações importantes. “Objetivo da viagem: matar inimigos.”
Fiquei em dúvida quanto à exclamação mais apropriada para a minha missão: viva! ou porra!
Optei patrioticamente por viva!
O folheto mostrava também as vantagens da fast food nas trincheiras, como limpar o rabo sem papel,
o que dizer nas cartas pra família (já trazia cartas prontas).
Na última página do folheto estava escrito:
“A guerra é boa, a paz é um pesadelo.
Prefira a guerra, o tempo de guerra é melhor do que o tempo de paz.
Guerra é melhor do que paz.
Todas as guerras foram preparadas em tempo de paz.”

(Recepcionista volta. Edson senta.)

(Toca o telefone.)

RECEPCIONISTA – Olá. Boa noite. (Pausa.) Sim. (Pausa.) Não. (Pausa.) Sim. (Pausa.) Não. (Pausa.)
Sim. (Pausa.) Não. (Pausa.) Sim. (Pausa.) Não. (Pausa.) Então, adeus. (Desliga o telefone.)
Só mais um minutinho. A entrada não demora.

(RANIERI entrega o pudim para alguém)

LUIZ FELIPE – Cavalos. Eu gosto de cavalos. Não posso ter meu bicho de estimação em casa.
Quem gosta de elefantes também não. Abro a janela do apartamento. Procuro no céu cavalos voando.
Procuro na terra cavalos pousados sobre pinheiros. É mais provável enxergar automóveis estacionados sobre os pinheiros.
Eu insisto em enxergar cavalos. Eles passam voando. Vão na direção do litoral. Eles sempre voltam bronzeados.
Cavalos encontram éguas. Copulam em pleno vôo. Ouço gargalhadas.
Cavalos e éguas riem muito depois de copular em pleno vôo. São sábios. Riem muito depois de copular.
São felizes. Sabem gargalhar em pleno vôo. Um ou outro dá um vôo rasante. Um ou outro passa perto da minha janela.
Quer me assustar, cavalo? Claro que não. Sabe que eu não me assusto com ele. Somos velhos amigos.
Formam grupos. Se exibem para mim. Bailam. Três deles se escondem numa nuvem. Outros me dão as costas.
Ficam olhando para as estrelas. Um deles pára sobre a lua. Eclipse. Bato palmas.
O cavalo tenta se curvar para agradecer. Meus cavalos vão aos pinheirais.
São disseminadores das sementes do pinho.
Eu gosto de cavalos. Não posso ter meu bicho de estimação em casa. Quem gosta de elefantes também não.

RANIERI – Me passe o pudim. (Ranieri recupera o pudim e volta a sentar.)

EDSON – A chegada ao Front, como se fosse Paris, New York, Roma, Marte, me mostrou cenas que eu poderia resumir num título:
Só pastiche no front. Claro, havia ranger de dentes, ninguém era louco de desobedecer este mandamento.
Havia choro, claro, ninguém era de ferro. Recebi munição, fuzil, maconha, cocaína, aspirina e comida,
fui para a trincheira. Entrei na trincheira com medo de alguma coisa óbvia. Medo filho da puta.
Medo filha da puta. Medo filha da puta. O meu fuzil tinha gatilho, coronha, mira, munição, culatra e soldado.
Gritei algo do gênero ‘venham seus filhos da puta’ e sentei na lama para comer um sanduíche.
Depois deitei na lama apoiando a cabeça numa pedra e dei um cochilo.

Acordei com uma bomba explodindo perto da trincheira,
eu deveria ter ouvido o ronco do avião antes de ser acordado pela bomba,
o ronco do avião era do tamanho do meu despertador.
Foi tudo puro reflexo cinematográfico: ergui o fuzil e atirei.
Porra, nunca alguém vai acreditar em mim. Sei lá onde foi, em que parte do avião a bala do meu fuzil acertou,
mas o filho da puta começou a largar fumaça, foi perdendo altura até explodir no chão.
Por nossasenhorameioparecida! porra! eu derrubei o filho da puta do avião!
No primeiro instante a sensação foi de euforia, pulei dando um soco no ar. Depois veio o medo.
Um medo filha da puta: ninguém derruba um avião assim sem mais nem menos.
Guerra é guerra, eu sabia, mas mesmo sabendo eu fiquei com medo.
Caralho, que ideia filha da puta que me deu naquele momento: e se o avião não fosse inimigo?,
se o avião fosse nosso? Decidi ir atrás dos destroços do avião.
Se fosse nosso, eu daria socorro aos sobreviventes, se fosse avião inimigo eu terminaria o serviço com alguns tiros nos sobreviventes.
E eu poderia saquear o avião se tivesse sobrado alguma coisa.
Eu tinha me transformado num perfeito filho da puta, o general Eustáquio se orgulharia de mim
me chamando de perfeito soldado.
Mas mudei de ideia, era a hora do lanche e comi mais um sanduíche e me deitei de novo na lama
e apoiei a cabeça na pedra e dei outro cochilo gostoso.

(Recepcionista volta. Edson senta. Toca o telefone)

RECEPCIONISTA – Boa noite. (Pausa.) Hã, hã. (Pausa.) Hã, hã. (Pausa.) É com s ou com z? (Pausa.) Hã, hã.  (Pausa.)
Fale mais devagar. (Pausa.) Hã, hã. (Pausa.) Como é o nome dele? (Pausa.) Nome estranho. (Pausa.)
Hã, hã. Jóia.  Não se preocupe. Boa noite. (Desliga o telefone.) Só mais um minutinho.

EDSON – Fui acordado pelo carteiro, era uma carta daquela moça bonitinha que o governo nomeou minha noiva.
Já contei do meu horror pelo óbvio, então adivinhem só o que dizia a carta: a minha noiva estava grávida.
Deve ter sido o adeus que trocamos na estação, ela na plataforma e eu no trem.
Para um homem que derrubou um avião como eu havia acabado de fazer, engravidar a noiva com um aceno à distância era fácil.
Engravidar sem gozar, como diria o padre Eustáquio, sem orgasmo é mais santo.
Passei algumas horas na trincheira fazendo planos para o bebê. Se fosse menina, seria virgem para sempre.
No caso de menino, faria carreira militar, para a satisfação do general Eustáquio.

Comi mais um sanduíche e dei outra cochilada e sonhei. Sonhei que havia sido convocado pra guerra
e que ao chegar à trincheira fui abatendo aviões a tiros de fuzil. Acordei porque fiz xixi na cama.
Vocês sabem qual era a consequência de mijar nas calças numa trincheira? Voltar pra casa.
Antes que o soldado cague nas calças e desmoralize o exército e, por que não dizer?, desmoralize a própria guerra.
Voltei pra casa, ou não, me deram a passagem de trem para a cidade errada. Foi ótimo, não encontrei a minha noiva grávida.

(Edson canta Love me Tender.)

(RANIERI entrega o pudim pra alguém. Ranieri recupera o pudim e volta a sentar.
Michelle faz exercícios vocais. Ressonâncias, polifonias.)

MOA— As mulheres desta cidade sumiram.
MI – O quê?
MOA— As mulheres desta cidade sumiram. Onde será que elas se meteram?
MI – Sim. As mulheres desta cidade sumiram.
MOA— Não costumo insistir com certas coisas. Quando não têm solução, eu desisto.
MI — Ainda bem que alguma coisa não tem solução.
MOA — Por quê?
MI— A gente continua tendo o que fazer.
MOA — O ócio enobrece a alma.
MI — Os ócios do ofício. No dia em que não me sobrar mais nada para fazer, nem ócio,
vou me dedicar a experiências com transgressões.
MOA — Por exemplo.
MI — Subir pra baixo e descer pra cima.
MOA — Você não vai conseguir.
MI — E daí? O importante não é conseguir, o importante é tentar.
MOA — Competir.
MI — Merda. Você não entende nada de diversão. Você conhece o jogo da casca de banana?
Pense na cena do sujeito que joga as cascas de banana pra frente.
Joga as cascas de banana no próprio caminho. É muito interessante. Garanto que é muito interessante.
Você sabia que a casca de banana nem sempre tem a forma de casca de banana? Verdade.
A casca de banana pode assumir as mais variadas formas. Vou dar alguns exemplos:
-Waterloo foi a casca de banana de Napoleão.
-Watergate a casca de banana de Richard Nixon.
-Escobar foi a casca de banana do Bentinho. Ou da Capitu, sei lá.
-Dallas foi a casca de banana de John Kennedy.
MOA – Mas há quem diga que foi Marilyn Monroe.
MI – Isso. Esse é o jogo. Transgressões.
MOA – Perguntem pros peixes se eles não acham que a minhoca é muito
parecida com casca de banana.
MI – Stalin tinha certeza que a casca de banana dele era Trotsky.
-Criptonita é a casca de banana do Superman.
-Judas foi a casca de banana de Cristo, ou vice-versa.
Não é um jogo interessante? (para todos)
Reúna a família em casa e proponha o jogo da casca de banana. Dá até pra jogar a dinheiro.

MOA — Você conseguiria se divertir tentando subir pra baixo e descer pra cima?
MI — Mas é claro.
MOA— Não sei se você se divertiria. Mas tenho certeza que seria divertido pra quem estivesse assistindo.
MI — Um monte de mulher assistindo. Apaixonadamente.
MOA— Estamos os dois com falta de mulher, certo?
MI — Certo.
MOA — Então vamos organizar a choradeira. Cada um tem cinco minutos pra chorar suas mágoas.
Durante cinco minutos o outro se compromete a ouvir com paciência. Quem vai chorar primeiro, vamos decidir no par ou ímpar.
MI — Par.
MOA— Ímpar.
MI — Um, dois, três.
MOA — Empatou.

MI — Eu tenho uma opinião terrível sobre as mulheres.
MOA— Qual é?
MI — Elas são maravilhosas. Qual é o vinho correto para beber com peixe?
MOA— Branco.
MI — E pra beber com palavras cruzadas?
MOA – (Tira as palavras cruzadas do bolso.) Tabaco em pó pra cheirar, 4 letras
MI – rapé
MOA – farmácia, 6 letras
MI – botica
MOA – corrida de longe alcance, 8 letras
MI – maratona
MOA – cupido, 4 letras
MI – eros
L.F. – eros tem 5
MI – tem 4, é sem agá
MOA – instrumento agrícola, 2 letras
MI – pá
MOA- área central dos circos, 5 letras
L.F. – arena
MOA – apetite sexual dos animais, 3 letras
L.F. – cio
MOA – cidade do litoral paranaense pra onde o curitibano desce veranear, 8 letras
MI e L.F. – MATINHOS

(Pausa.)

MOA — Sabe, eu ando com um medo filha da puta. Sabe esse tipo de medo, de andar pela rua
com um medo filha da puta que de repente um tijolo acerta na cabeça depois de cair do alto de um prédio.
MI — Que de repente a rua se transforme em areia movediça.
MOA — Medo de dormir porque acha que nunca mais vai acordar.
MI — Não acordar a tempo e perder o ônibus é uma coisa, não acordar nunca mais e perder todos os ônibus é outra.
MOA — Medo de estar andando pela rua e ao virar a esquina esbarrar com o Beto Richa
e ele me mandar prender porque eu estava na passeata dos professores.
MI — Medo de estar andando pela rua e cair na minha cabeça mais que um tijolo, cair o trem de pouso perdido por um avião.
MOA— Estou caminhando por uma rua de paralelepipedos, a São Chico.
Ela se transforma num estreito beco sem saída e sou atacado e currado por personagens do Walt Disney.
MI — Medo de eu ser o socorro e precisar de socorro.
MOA — Medo de achar que o medo é uma coisa boa, se sentir bem sendo um cagão.
MI — Medo de ser um astro e aquela filha da puta pisar distraída em mim.
MOA — Repete.
MI — Medo de ser um astro e aquela desgraçada pisar distraída em mim.
MOA— Filha da puta.
MI — O quê?
MOA— Da primeira vez você chamou de filha da puta, depois de desgraçada.
MI — E daí?
MOA — Decida-se.

(RANIERI entrega o pudim pra alguém.)

MI — Decidir o quê?
MOA — Ela é filha da puta ou é desgraçada?
MI — Nenhuma das duas coisas, não há o que decidir.
MOA — Mas então o que ela é?
MI — Ela é um amor.
MOA — Você tem medo dela.
MI — Não.
MOA — Prove.
MI — Ela não existe.
MOA – Já sei. Ela é de Curitiba.

(Ranieri e Michelle cantam o Hino de Curitiba.)

RANI E MICHELLE – (cantam)
Cidade linda e amorosa da terra de Guairacá.
Jardim luz, cheio de rosa Capital do Paraná.
Pela ridente paisagem
Pela riqueza que encerra,
Curitiba tem a imagem
Dum paraíso na terra.

Subindo pela colina
Ativa sempre será.
Jardim luz cheio de rosa
Coração do Paraná.

EDSON – Me passe o pudim. (L.F. passa. Tempo.)

RANIERI – É possível identificar entre os transeuntes aqueles que são reais e os personagens e ficção.
Aqueles que portam profundas amarguras e caminham com as mãos fundas nos bolsos e cabeças abaixadas são de ficção.
Quem carrega sacola é real, salvo se dentro da sacola houver um pacote de cartas amarradas com uma fita vermelha.
Quem chuta pedras é ficção. Os casais são sempre reais, mesmo quando discutem dramaticamente.
As crianças são os transeuntes mais difíceis de identificação, tão difíceis que parecem ficção,
tão reais que parecem reais.
A ficção senta nos bancos da praça, mas só o real está lendo o jornal disfarçadamente
para espionar através de furos sutis no papel o que acontece no mundo,
porém isto só vale nesta imensa cidade. 

(Recepcionista sai. L.F. fica incomodado e vai espiar na cortina. Depois se encosta na parede, parece incomodado. Respira com certa dificuldade.Tempo. Michelle volta a fazer exercícios vocais.)

RANIERI – Me passe o pudim. (Edson passa. Ranieri volta a sentar.)

(A Recepcionista não aparece. Escutam-se gargalhadas na sala em frente.
A Recepcionista coloca a cabeça na cortina e espia os que esperam. Mais gargalhadas.
Edson volta a sentar. Moa fica incomodado e vai espiar na cortina. Nina dá um corridão nele.
Depois se junta a L.F. Michelle volta a sentar.)

MOA  Tá preocupado?
L.F. Não sei
MOA  Vc parece preocupado?
L.F.— Eu nunca senti atração pelo desconhecido, nunca fui levado a procurar alguma coisa
pelo simples fato de não saber onde iria dar, o que iria acontecer. Agora sou obrigado a enfrentar exatamente isto.
MOA — Você parece mais preocupado em saber o que VAI acontecer e não com o fato de que pode acontecer o pior.
L.F.— Acontecer o pior. Pois é, isto me parece tão distante, ou tão fantástico, que não tem chance de ser real.
MOA — Certas coisas só acontecem com os outros, né?
L.F.— É. E também eu não desejo que aconteça o pior com uma grande veemência.
MOA — Acho que nós dois não estamos acreditando que vai acontecer o pior.
L.F.— É.
MOA — Estamos conversando de uma forma que não revela duas pessoas desesperadas.
L.F.— Ou então somos atores, mestres da dissimulação.
MOA — Mas a situação é terrivelmente real para que a gente esteja dissimulando.
L.F.— Real, mas tem seus toques absurdos, irreais, assustadoramente irreais.
MOA — O irreal é o que amedronta mais.
L.F.— Aquilo que parece irreal.
MOA — Será que eles não nos colocaram nesta situação, que nos parece irreal de propósito?
L.F. – Acho que eles preferem que a gente pense que vai acontecer o pior. Há mais chances de extrair informações.
MOA  – Sim.
L.F. – Duas pessoas apavoradas abrem melhor a boca. As coisas saem com a facilidade de um bocejo.
MOA  -Vamos ser mais dois desaparecidos.
L.F. – Estaremos no murmúrio dos amigos. O que aconteceu com eles?
MOA  – Por enquanto nem nós podemos fazer suposições.
L.F. – Correrão boatos.
MOA  – Muitos.
L.F. – Foram mortos. Estão saudáveis, contaram tudo. Estão arrebentados, capados, cegos, loucos.
Fugiram e estão no exterior. Um morreu com uma dose excessiva de cocaína.
Os dois viraram a casaca e são funcionários burocráticos. Foram colocados num avião e lançados em alto-mar.

(Pausa.)

MOA – Estamos com um medo filho da puta.
L.F. – Isto parece irreal. Nos deixaram aqui, aparentemente livres.
MOA – Estamos presos.
L.F. – Sim.
MOA – Se tentarmos fugir, seremos fuzilados no meio da rua.
L.F.— Por que isso tudo? Presos aqui.
MOA – O que querem da gente? Montes de confissões?
L.F. – Informações, números, nomes, endereços, ideias. O de sempre.
MOA – Um arrependimento público pode interessar a eles.
L.F. – Nós dois negociaríamos com eles um arrependimento público? Uma delação premiada.
MOA – Se eles pensam assim, estão perdendo tempo.
L.F. – Eles poderiam ter dito: permaneçam no endereço de vocês, não saiam.
Amanhã viremos buscá-los para o fuzilamento. Pronto. Aí tudo estaria nos devidos lugares.
MOA – Tudo real.
L.F. – Tudo realista. O irreal. . . Bem, ele será real amanhã.

(Pausa.)

MOA — Medo filho da puta, medo filho da puta, medo filho da puta.
L.F.— Quem somos nós, afinal de contas?
MOA — Quem somos?
L.F.— Muito importantes?
MOA — Não acredito.
L.F.— Medianamente importantes?
MOA— Nem isso.
L.F.— Pouco importantes?
MOA— Sim. Mas pouco importantes só até o momento em que passarmos a representar uma boa pista.
L.F. – Estamos nos enfraquecendo em aparente liberdade. É muito diferente e muito pior.
MOA — O touro.
L.F.— O que tem o touro?
MOA — Nas touradas, entram uns caras antes do toureiro. Eles espetam o touro.
Quando o toureiro entra, o touro já está ensanguentado. Fica tudo mais fácil.
L.F.— Quando o touro entra em cena ele tem a impressão de estar livre?
MOA — Sei lá.
L.F.— Vamos saber logo logo, né?
MOA — É, por enquanto tudo tem o tom de irreal.
L.F.— Mas nós somos reais, porra. Existimos. Estamos aqui.
Não somos a mera coincidência de parecermos com pessoas vivas ou mortas.
MOA — Sabe duma coisa?
L.F.— O quê?
MOA— Temos certeza de que seremos mortos ou permaneceremos vivos.
L.F.— É óbvio.
MOA — Temos certeza apenas do óbvio. Quanto à dúvida…
L.F.— Qual é a dúvida?
MOA — Se permanecermos vivos. . . a dúvida é esta: teremos comida ou passaremos fome?
Se nos matarem, bem, os mortos se conformam. Se ficarmos vivos, queremos saber como é que sobreviveremos.
É esse medo filho da puta de passar fome, esse medo, sim senhor, filho da puta de passar fome,
medo filho da puta de passar fome.  (Pausa.) Me passa o pudim!

(L.F. e Moa se levantam sentam. Entra Recepecionista.

RE – Me passa o pudim! (Ranieri passa. Ela sai com o pudim.)

(Moa canta Urubu Tá Com Raiva do Boi – Baiano e Novos Caetanos. Todos cantam junto. L.F. toca.
Durante a música Ranieri tem um ataque de nervos (fuma, grita, bebe, se suja, fica exausto.)

O medo, a angústia, o sufoco, a neurose, a poluição
Os juros, o fim… nada de novo.
A gente de novo só tem os sete pecados industriais.

Urubu tá com raiva do boi
E eu já sei que ele tem razão
É que o urubu tá querendo comer
Mais o boi não quer morrer
Não tem alimentação

O mosquito é engolido pelo sapo
O sapo a cobra lhe devora
Mas o urubu não pode devorar o boi:
Todo dia chora, todo dia chora.
Mas o urubu não pode devorar o boi:
Todo dia chora, todo dia chora.

O norte, a morte, a falta de sorte…
Eu tô vivo, tá sabendo?
Vivo sem norte, vivo sem sorte, eu vivo…
Eu vivo
Aí a gente encontra um cabra na rua e pergunta: ‘Tudo bem?’
E ele diz pá gente: ‘Tudo bem!’
Não é um barato?
É um barato

Urubu tá com raiva do boi
E eu já sei que ele tem razão
É que o urubu tá querendo comer
Mais o boi não quer morrer
Não tem alimentação

Gavião quer engolir a socó
Socó pega o peixe e dá o fora
Mas o urubu não pode devorar o boi
Todo dia chora, todo dia chora
Mas o urubu não pode devorar o boi
Todo dia chora, todo dia chora

Nada a dizer… nada… ou quase nada…
O que tem é a fazer: tudo… ou quase tudo…
O homem, a obra divina…
Na rua, a obra do homem…
Cheiro de gás, o asfalto fervendo, o suor batendo
O suor batendo

RECEPCIONISTA – Agora sim. A entrada está liberada. Por aqui por favor.
Aqueles que possuem as senhas com números primos até 30. (Pausa.)
Eu disse aqueles que possuem as senhas com números primos até 30. (Pausa.)
Números primos são números naturais que possuem apenas dois divisores: o número 1 e o próprio número;
e que produzem uma divisão exata com resto igual a zero. (Pausa.)
Enfim, os que tem as senhas: 2,3,5,7,11,13,17,19,23 e 29.  Façam uma fila aqui por favor.
E também os que tem as senhas com números ímpares 9,15,21,25,27,31,33,35,37,39 (menos o número 1).

Aqueles que possuem as senhas com números pares com final 6 e 8 – 6,8,16,18,26,28,36,38
(mais o número 1 e o 40). Façam uma fila aqui por favor.
E também os que tem as senhas com os outros números pares: 4,10,12,14,20,22,24,30,32,34.

————————————————–
Situação 4: Um banho de sol na beira do mar.

(Algumas pessoas entram numa sala pequena e tem direito à cinco minutos de exposição ao sol.
As pessoas encontram à sua disposição: cadeiras de praia; guarda-sol e protetor solar; areia e baldinho;
vista pro mar (foto/banner); exemplar da revista Leite Quente com textos do Karam.
Um cronômetro marca o tempo do banho de sol, regressivamente.
Enquanto isso, os que aguardam ouvem “números musicais” na sala de espera:
Medo e Socorro (Luis Felipe Leprevost). Passam-se 5 minutos regressivamente.)

(No final do banho de sol, todos saem em procissão cantando versão de Caicó de Villa-Lobos, letra Karam.
O público é convidado a entrar no ônibus da Viação Graciosa que está estacionado na Rua São Chico.)

——————————-

Situação 5: Em trânsito.

PONTO DE ÔNIBUS – (Narração em off no ônibus durante o trânsito até a Praça Tiradentes – voz Ranieri – 3min30)

Num ponto de ônibus, há algumas pessoas esperando a condução:

Sujeito gordo, extremamente cansado, respira com dificuldade.
Carrega uma mochila e uma caixa de violão, com violão dentro porque
o sujeito fica arcado pelo peso enquanto segura a caixa. Demonstra impaciência.
Às vezes seus movimentos lembrando os movimentos de um cavalo.

Mulher com sacola de compras, verduras pulando para fora da sacola,
um pedaço da alface aparecendo junto com umas cenouras,
o contorno de um repolho, três beterrabas, a flor da couve-flor, o talo do salsão,
tudo aparecendo pela boca da sacola.
A mulher não segura a sacola pela alça, segura abraçada à sacola.
Faz vocalizes e polifonias vocais.

Garoto com a mala da escola. Com lápis, caneta, caderno e livro,
e tudo o mais que um garoto pode inventar de carregar, ou até fazer de conta que tem dentro da mala.
Principalmente fazer de conta.
O garoto também não segura a mala pela alça, a mala está debaixo do braço esquerdo,
bem firme, e com a proteção do direito, que ajuda a envolver a mala. Faz palavras cruzadas.

Senhor idoso, mas firme das pernas, vestindo paletó, colete e gravata,
um guarda-chuva completa o personagem.
O guarda-chuva em pé diante do senhor parado, as duas mãos sobre o guarda-chuva,
o guarda-chuva servindo de apoio para o senhor.
Às vezes empunha o guarda-chuva como se fosse um fuzil.

Moça jovem, tênis, roupa desbotada, cabelos desarrumados, sem pintura,
uma fita vermelha em volta do pulso e os braços segurando um embrulho colorido,
os dois braços, quando bastaria um para segurar o embrulho.
Às vezes atende o telefone que toca.

Homem com a barba por fazer, calças com manchas que me pareceram de óleo,
um rosto abatido, ar cansado, as mãos caídas rente ao corpo.
Apesar do ar cansado que poderia exigir uma posição alquebrada, ele se mantém rijo, sob tensão evidente.
Está sempre calado.

Os personagens: Gordo, Mulher, Garoto, Senhor, Moça e Homem.

Com estes personagens já fica óbvia a ação. O Homem assusta os demais.
Olhando para o Homem que não fez a barba e usa uma calça suja, cada um dos demais personagens pensa alguma coisa sobre ele.
O Gordo pensa em não chegar perto dele porque deve estar cheirando mal.
A Mulher pensa que deveria olhar para ele apenas com o rabinho do olho.
O Garoto pensa que o Homem era um daqueles perigosos, conforme o alerta na escola.
O Senhor pensa que estava ali um bom exemplo de homem que não lutou e, conseqüentemente, não venceu na vida.
A Moça pensa algo como “que coisa mais feia”.

No fundo, todos ficam com medo do Homem. No fundo é modo de dizer, dá para ver na cara deles o medo.
O raciocínio daquelas pessoas que agarram alguma coisa é lógico:
o homem de barba por fazer e calças sujas tem alguma coisa contra nós.
Mais que lógico, o raciocínio é simplista. Mas fazer o quê? O acontecimento estava ali, no ponto do ônibus.

O Gordo fica preocupado porque o Homem pode ser um bandido.
A Mulher vê no Homem, sem qualquer dúvida, um ladrão.
O Garoto lembra do que lhe disseram em casa e também não tem dúvidas: o Homem é um assaltante.
O Senhor pensa o mesmo que os demais, mas a sua palavra precisa é meliante.
A Moça imagina o Homem atacando, bastava um segundo para ele decidir e fazer.

E assim se instala um clima de guerra fria no ponto do ônibus.

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Situação 6: Um ponto de ônibus

(CENA: O Ônibus estaciona no ponto de ônibus. A cena está formada. Em seguida chega Ranieri.)

Quadro 1 – Gordo com medo, Mulher abrindo a boca para gritar, Garoto sozinho.
Senhor de guarda-chuva e ódio. Moça com pavor nos cabelos
 e Um homem.

Quadro 2 – Garoto e Moça abraçados. Mulher pedindo socorro para Senhor,
Gordo encurralado atrás da caixa do violão
 e Um homem.

Quadro 3 – Gordo, Mulher, Garoto, Senhor e Moça esperando o ataque que não acontece e Um homem.

O Senhor grita para o Homem: – Ataque-nos. Somos suas presas. Seja nosso algoz. Cumpra o seu dever.
O Homem não ataca. O Senhor, porta-voz do grupo que se sente ameaçado, insiste.
Dá abertamente chance ao Homem de atacá-los, roubá-los, feri-los, matá-los, estuprá-los, devorá-los.
O homem não ataca, não rouba, não fere, não mata, não estupra, não devora.
O Homem fica apenas assustado. E se vira para sair dali. Ele está indo embora sem cumprir o dever dele.

Para o Gordo, a Mulher, o Garoto, o Senhor e a Moça não há outra saída:
como o Homem não atacou, eles atacariam.

(Depois do ataque os personagens entram no ônibus. O Homem fica caído na calçada.
O ônibus leva personagens e público de volta à Rua São Chico. Grande silêncio.)

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CRÔNICAS DE ALHURES DO SUL (em off no ônibus – voz Karam – 1 minuto)

Mês passado teve carnaval.
Não percebi.
Não, não passei fevereiro na Islândia, não.
Não coloquei o pé fora do Brasil.
Fiquei sabendo por acaso que no mês passado teve carnaval.
Por acaso porque um pierrô entrou no ônibus, disse que estava desde quarta-feira de cinzas procurando o caminho de casa.
Pediu ajuda.
Fez questão de exibir os dentes quando disse:
Acho que moro na esquina da Ubaldino com Amintas, mas não tenho certeza.
De novo, o Nelsinho de novo.
Não sei como ele consegue escapar do livro com tanta facilidade.
Acho que o Dalton é cúmplice.

USOS E COSTUMES –  (em off no ônibus – voz Eneas Lour – 1 minuto ) 

Eu disse que ia viajar e inventei o nome da cidade.
Perguntaram onde ficava.
Eu inventei o nome do estado.
Eu disse que era a terceira maior cidade do estado, inventei o nome das outras duas,
disse que uma das outras duas era a capital do estado.
Perguntaram se era boa essa cidade para onde eu estava indo.
Inventei que ficava num vale, estava cercada de colinas cheias de árvores 
e inventei que passava um rio muito verde e cheio de peixes.
Inventei a origem da população, usos e costumes, inventei o folclore, a atividade econômica,
a importância política dela no estado e inventei duas ou três personalidades que nasceram lá.
Descrevi a área urbana, inventei avenidas e prédios, tráfego, ônibus e trens,
inventei uma universidade, uma biblioteca, uma catedral gótica e uma companhia de ópera.
Então perguntaram quando eu voltaria, mas aí já estavam querendo saber demais.

(Ouve-se bem baixinho música Caicó instrumental e sons de ondas do mar.)

FIM